Apesar de tudo que você diz, eu gosto dessa solidão no ateliê, solidão que no fundo não passa de uma revisita à minha própria individualidade, dando a sensação de liberdade entre quatro paredes. Mas, se você quiser ser uma com essa minha liberdade, há espaço para dois. E uma liberdade ainda maior nascerá disso, já que a sua protegerá e aumentará a minha, espero, e vice-versa.
O trecho acima é uma tradução da Folha de São Paulo de uma das 35 cartas enviadas pelo revolucionário Marcel Duchamp à sua amada, a brasileira Maria Martins. Ele, o dadaísta irreverente que questionou todos os valores do mundo pós-guerra. Colocou bigodes na Gioconda de Leonardo para criticar a apreciação do senso comum e assinou objetos do cotidiano transformando-os em arte para criar o conceito do ready made. A sorte da arte conceitual estava lançada. Ela, moça fina da alta sociedade. Escultora surrealista incompreendida no Brasil dos concretistas. Recebia boas críticas, no entanto, na Europa encantada com os mitos amazônicos e ancestralidade tropical – temas recorrentes em sua obra.
Ela era casada com o diplomata Carlos Martins Pereira e Sousa, mas ambos (dizem) mantinham uma relação aberta, o que permitia relações extraconjugais sem muito drama. Maria manteve, então, uma relação íntima com Duchamp que a ajudou na carreira internacional e com quem dividia detalhes de seu processo criativo. No ano passado o Philadelphia Art Museum publicou um livro com todas as cartas guardadas pela família de Maria. Uma leitura que verve aprova.